[Capa da revista semanal alemã Der Spiegel de 12 de maio de 2014: "Morte e jogos: o Brasil diante da Copa do Mundo"]
Por Flávio Aguiar.
Toda a relação com qualquer
cidade envolve amor e ódio. Por que com Berlim seria diferente?
Mas eu pensei que poderia ser. Mas não. Felizmente não. Porque a
descoberta do ódio realça o amor existente.
Amo – assim com A maiúsculo – poucas cidades. A Porto Alegre onde
nasci e cresci. A Porto Alegre da inesquecível Campanha da Legalidade de 1961.
A Guaíba – Praia da Alegria (que nome, em frente à Praia da Tristeza, do outro
lado do rio) onde passava férias, portal do pampa desabrido, onde gauchões
enormes, caboclos curtidos pelo sol vinham entregar as boiadas ao matadouro, e
depois iam passear com seus cavalos altaneiros na praia onde eu me banhava,
minúsculo e maravilhado. Montreal – onde descobri a longevidade do inverno e a
realidade dos confrontos culturais. A pequena Burlington, em Vermont, nos EUA,
minúscula cidade que de totalmente provinciana passou a condição de vanguarda
alternativa.
São Paulo, onde passei a maior parte da minha vida profissional,
foi diferente. Aquilo foi um casamento. Como em quase todo casamento, amei
algumas coisas e detestei outras. Amo o Butantã, a vizinha Itapecerica da
Serra, o Centro Velho, entre outras coisas, e aquele ar de estar sempre pronta
para tudo, a qualquer hora do dia e da noite. Detesto grande parte da burguesia
da cidade, a mais reacionária e petrificada do país, e o consumismo que agora,
como quase qualquer um pode consumir no país, se dirige a Miami.
Berlim: a cidade-história, com suas conquistas, dores e cicatrizes
permanentes. A cidade de uma vida cultural intensa e ao alcance da mão e dos
bolsos, pois há muita coisa de grande valor e muito barata. Berlim
internacional sem ser falsamente cosmopolita. Berlim do transporte público bom
e fácil. Berlim, nesta passagem entre ser o burgo dividido e meio provinciano
que era e a nova metrópole-capital da principal economia da Europa. Até a
Berlim do aeroporto que não consegue sair do chão eu amo, prova de que a
“deutsche Effizienz”, afinal de contas, também é humana e tem seus Waterloos como
a de qualquer outro país.
Mas nos últimos tempos Berlim me revelou aspectos odiosos de se
viver aqui. Bom, isto também é humano, afinal de contas. Não me refiro ao tônus
conservador que predomina em toda a política alemã, de que ela é a capital. Me
refiro ao fato do Brasil ter entrado na mira do que de pior há na mídia local
(e alemã, e europeia). Isto de levantar de manhã e ouvir pelo rádio o martelar
de negatividades sobre o Brasil, onde, no fim de contas, nada há nem houve nem
nunca haverá de bom. Onde os pobres serão para sempre pobres, os favelados para
sempre favelados, os políticos para sempre corruptos, o país cheio, aliás,
entupido de pedófilos, cafetões e prostitutas, o país da motosserra, da
homofobia, do machismo grosseiro, enfim, tudo me lembrando a expressão
com que muitos oficiais nazistas descreviam o ponto final da linha do trem que
ia até Auschwitz: annus
mundi, o cu do mundo. Ou o fim do mundo.
E o martelar continuava pelo dia, na mídia escrita, nos
noticiários de tevê à noite, sem parar, sem parar, sem parar. Aí veio o
episódio da Embaixada do Brasil, que
já comentei aqui. Um pequeno bando de juvenília foi lá na calada da noite
apedrejar as suas vidraças. Oitenta pedradas, trinta e duas janelas partidas.
Acho que o bando de coiós imaginava estar vivendo a sua grande praça Tahir, no
Cairo, ou Tiananmen, em Pequim, ou ainda suas tardias jornadas de 68. Mas na
verdade estavam vivendo a sua pequena, ridícula e anacrônica Krystallnacht,
aquela em que os nazistas destruíram sinagogas e lojas de judeus em 1938. As
pedras se dirigiam, agora em 2014, contra o símbolo de um povo considerado de
segunda categoria, apedrejado continuamente pela mídia local. Estou sendo
exagerado? Estou respondendo ao exagero da “cor local”. Avalizada pela circular
do Ministério de Relações Exteriores dirigido aos eventuais viajantes sobre o
perigo-Brasil.
Foi odioso. Ainda é. Nesta semana a revista Focus daqui – cuja capa Épocacopiou
– publicou comentário dizendo que o jogo do Brasil contra a Colômbia se
passaria na “capital do crime” – Fortaleza. Esquecem talvez que as grandes
capitais do crime são as bolsas de Nova Iorque, da City londrina, Paris e – por
que não – Frankfurt.
Mas na verdade agora tudo amainou. Como não houve a catástrofe
esperada, ou até desejada, o show de incompetência e a inadimplência da Copa no
Brasil não aconteceram, como na verdade os turistas e o bilhão ou mais de
pessoas que assistem os jogos estão encantados com os espetáculos, do futebol à
hospitalidade das gentes do Brasil, o assunto está morrendo pouco a pouco. E
vai morrer. Pena que talvez venha a ser substituído pelos outros chavões de
sempre: Brasil = praia, futebol, café e bundas de fora.
Não, muita gente não vai se convencer. Vai continuar repetindo que
os estádios, depois da Copa, ficarão às moscas, sem se dar conta que o Mané
Garrincha, por exemplo, recebeu pouco mais de 300 mil visitas em 36 anos de
existência, mas que desde sua transformação na presente arena, recebeu em seis
meses, 640 mil em 27 mega-eventos.
Porém é verdade: a tempestade amainou. Talvez apenas por falta de
assunto. Os jornalistas que foram ao Brasil querendo encontrar apenas pobreza,
miséria e desacerto, encontraram o que queriam. Afinal, em nosso país continuam
existindo pobreza, miséria e desacerto. Mas fecharam os olhos para o resto.
Pior: muitos insistem em fechar os olhos dos outros para o resto. Pior ainda:
muitos destes outros querem mesmo fechar os olhos para o resto e sentirem-se
felizes por suas vidas eurocêntricas. Que as vivam, e nos deixem em paz. Ainda
creio na frase de Lincoln, segundo a qual é possível enganar alguns o tempo
todo, todos por algum tempo, mas é impossível enganar todos por todo tempo.
Como a tempestade amainou, é possível voltar a desfrutar os amores
de Berlim. Passear nas ruas, sentir o verão (apesar de sua entrada ter sido
cheia de frio…) acariciando as árvores e as flores, ver os corpos se deliciando
nos parques, jogados na grama com mais ou menos roupa – às vezes até com
nenhuma – curtindo a vida.
E ver os jogos, na Copa mais eletrizante das últimas décadas. Haja
coração!
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