Cobrados em jogos do Brasileirão, Ramon Abatti Abel e Wilton Pereira Sampaio têm sido exaltados pela atuações nos Estados Unidos
Por Ricardo Magatti
FILADÉLFIA - Ramon Abatti Abel e Wilton Pereira Sampaio, os brasileiros escalados para apitar jogos do Mundial de Clubes, têm ganhados elogios de especialistas em arbitragem em decorrência de suas atuações na competição e são bem avaliados pela Fifa.
Criticados no Brasil, os dois tiveram bom desempenho nas duas partidas que cada um apitou. o catarinense Ramon esteve em Manchester City 2 x 0 Wydad Casablanca e Real Madrid 3 x 1 Pachuca, enquanto que o goiano Wilton trabalhou em Monterrey 1 x 1 Inter de Milão e RB Salzburg 0 x 0 Al-Hilal.
Archivo VAR, um perfil espanhol nas redes sociais que faz análises da arbitragem mundial, descreveu como “impecável” o trabalho de Ramon na vitória do Real sobre o Pachuca, pela segunda rodada.
Ramon Abatti Abel é um dos árbitros brasileiros escalados para apitar o Mundial de Clubes Foto: Richard Pelham/AFP
No jogo, o brasileiro expulsou o defensor Raúl Asencio, do time espanhol, e acionou pela primeira vez no torneio o protocolo antirracismo no segundo tempo após queixa de Rudiger. O juiz fez o gesto de “X” com os braços, para registrar o episódio, como prevê a regra no artigo 15, presente no Código Disciplinar da Fifa desde maio.
Mas por que os Ramon Abatti Abel e Wilton Pereira Sampaio são contestados em jogos do Brasileirão e enaltecidos no Mundial? Há algumas explicações. As principais estão ligadas à postura dos jogadores fora do Brasil e a preparação da Fifa totalmente direcionada para um torneio de tiro curto como o Mundial.
“No Mundial de Clubes, o jogo é só técnico, não exige na parte disciplinar. Isso ajuda nas decisões do árbitro”, opina Sálvio Spínola, ex-árbitro e comentarista da Record. “O ambiente é melhor, tem menos pressão na gestão e nas escalas”.
"Há um processo de concentração plena, árbitros ficam no hotel em dedicação exclusiva, só pensando na arbitragem, no jogo. Com orientações e treinos diários"
Sálvio Spínola, ex-árbitro
De fato, antes e depois dos jogos do Mundial, os árbitro têm reuniões diárias com análises dos lances dos jogos que apitam e recebem mais suporte do que da CBF, que promete há décadas a profissionalização dos juízes no País.
“A Fifa dá toda a tranquilidade e o amparo quando você vai para competições internacionais. Esse apoio reflete no campo”, considera Carlos Eugênio Simon, o brasileiro que mais apitou jogos de Copa do Mundo - 2002 (Japão/Coreia do Sul), 2006 (Alemanha) e 2010 (África do Sul).
Em competições como o Mundial, a Fifa leva quase 100 profissionais para auxiliar os árbitros, que têm um amparo semelhante ao dado aos atletas. Esses profissionais - médicos, psicólogos, nutricionistas, entre outros - ficam hospedados nos mesmos hotéis que a equipe de arbitragem.
“Eles (árbitros) passaram por um seminário preparatório em que tudo foi ajustado, a preparação foi ajustada. Portanto, não contamos apenas com a tecnologia para ter bons desempenhos dos árbitros em campo. Estamos trabalhando duro”, disse o italiano Pierluigi Collina, chefe do Comitê de Arbitragem da Fifa, em conversa com jornalistas antes do Mundial.
No Mundial, ao todo, são 35 árbitros de 33 nacionalidades diferentes na lista divulgada pela Fifa. Já os responsáveis pelo VAR são 24, de 22 países diferentes.
Wilton Pereira Sampaio deve apitar jogos da Copa do Mundo de 2026 Foto: Cesar Greco/Palmeiras
A mentalidade, dizem ex-árbitros, também é diferente para quem trabalha em Mundial ou Copa do Mundo, uma vez que uma falha grave tira o juiz da competição. No Brasileirão, os profissionais costumam ir pra “geladeira”, mas depois voltam a apitar.
Ramon e o Wilton estão estão pré-selecionados para a Copa do Mundo de 2026, assim como Raphael Claus (Fifa/SP), que esteve no Mundial do Catar, em 2022. Edina Alves Batista (Fifa/SP) estava na relação preliminar, mas acabou saindo. Ela recentemente foi convocada para a Eurocopa feminina, marcada para julho, na Suíça.
Wilton, de 44 anos, tem mais experiência que Ramon, de 35. O goiano foi escalado para a última Copa do Mundo, no Catar, na qual apitou quatro partidas, incluindo as quartas de final entre Inglaterra e França. Na Copa de 2018, na Rússia, trabalhou com árbitro de vídeo. Ele está em sua oitava competição da Fifa.
É esperado que um dos dois brasileiros apite uma partida das oitavas de final, que será aberta no sábado, 28, com Palmeiras x Botafogo. A Fifa ainda vai divulgar a escala.
Escrevo esta carta às gurias árbitras de futebol. Às árbitras que me antecederam e que abriram caminhos e lutaram por possibilidades de eu estar aqui hoje. Às árbitras que partilham experiências comigo nesta temporalidade e que assim como eu, passam pelos caminhos trilhados pelas que vieram antes de nós, mas que estão abrindo outros caminhos e possibilidades na arbitragem para as árbitras que já estão chegando e para as que ainda chegarão. E às mulheres que desejam tornarem-se árbitras de futebol e que em mim, e nas árbitras que estão comigo em campo, já podem conseguir visualizar a arbitragem de mulheres como uma profissão possível.
Destaco que a escolha pela escrita em formato de carta está inspirada no livro “Querido estudante negro”, de Bárbara Carine (2023), uma narrativa que não trata apenas de uma ficção, mas que contém memórias da vida da autora nos espaços educacionais – escolas e universidade –, convidando quem lê a mergulhar na complexidade da formação das subjetividades negras por meio desses espaços. Nesta carta, o convite é para que a gente possa refletir, também sobre a formação das subjetividades, mas aqui, o destaque são as subjetividades de mulheres que ocupam o espaço da arbitragem de futebol profissional, seja ele masculino, seja ele feminino.
Lógico que qualquer análise que desconsidere a interseccionalidade entre gênero em diálogo com a sexualidade e raça é limitada. Afinal, eu, uma mulher branca, tenho as questões raciais ao meu favor. Minhas decisões em campo são colocadas em dúvida sempre, porque as decisões de quem ocupa a posição da arbitragem são o tempo todo questionadas pelos(as) jogadores(as), pelas comissões em campo, pela mídia, pelos(as) torcedores(as). Mas sinto e percebo que as minhas decisões são ainda mais questionadas por eu ser mulher. Não é raro eu escutar: “essa árbitra é muito fraquinha”, “tinha que ser mulher”, entre outros comentários. Mas minha cor, nunca foi colocada em questão ou foi foco de comentários preconceituosos e que desacreditam a minha arbitragem em campo. Enfim, penso ser indispensável localizar o lugar de qual estou falando.
Decidir se tornar árbitra de futebol pode ser considerado uma loucura. Muitas são as emoções que eclodem durante os noventa minutos de uma partida. Ser respeitada, xingada, odiada em uma fração de segundos, exige um trabalho psicológico e mental intenso. O fato é que, sem a arbitragem não existiria futebol e, para mim, decidir ingressar nesse meio foi uma das formas encontradas de continuar envolvida na modalidade que sempre fez parte da minha vida. Eu gostava de jogar futebol desde criança, e mesmo sendo do interior do Rio Grande do Sul, com uma família mais conservadora, meus pais me apoiavam a jogar futebol. Dediquei boa parte da minha infância e adolescência a esse esporte e, aos 16 anos, fiz parte da seleção brasileira de futebol. Escolhi abandonar a vida de atleta de futebol porque não via muito futuro, eram poucos os times de futebol feminino no Brasil, sem falar na remuneração, que ou era inexistente, ou era muito baixa.
Para ser árbitra de futebol profissional é preciso passar por alguns processos. Primeiro, temos que fazer o Curso de Formação de Árbitros de Futebol de Campo do nosso estado – no meu caso, o Rio Grande do Sul –, que tem duração de aproximadamente seis meses, com aulas teóricas e práticas. Durante o curso são realizadas provas teóricas e, ao final, um teste físico. Aprovada nas provas, a árbitra em formação se torna apta para integrar o quadro de árbitras da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), já podendo ser escalada nos jogos das categorias de base. Com o tempo e a quantidade de jogos, vamos ganhando experiência e nos qualificando, até que a comissão de arbitragem pode decidir nos subir de categoria, e também indicar nosso nome para ingressar no quadro de árbitras(os) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Esse processo é, teoricamente, o mesmo para mulheres e homens que desejam tornarem-se árbitras(os).
Li uma notícia na internet (Favero, 2024) que fala que a primeira árbitra central do Rio Grande do Sul foi Ivani de Gregori. Investiguei essa informação e encontrei que ela fez o curso de árbitras(os) da FGF em 1985, entrou para a CBF em 1992 e, para Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA), em 1995. No entanto, Ivani nunca apitou uma partida do Campeonato Gaúcho de Futebol Masculino e, após se aposentar da arbitragem, no ano de 2000 (Tavares, 2020) a FGF não teve mais uma árbitra em seu quadro, até 2018, que foi quando eu ingressei no quadro de árbitras(os) da FGF.
Vocês que já são árbitras(os) sabem que árbitras(os) centrais e árbitras(os) assistentes são coisas diferentes. Mas quem ainda não é, e também nem quer ser, talvez tenha algumas dúvidas com relação a isso. De modo muito simples e resumido, apesar de ambas(os) tomarem as decisões das partidas, a(o) árbitra(o) central é quem tem o poder do apito dentro das quatro linhas em campo, enquanto as(os) árbitras(os) assistentes são as(os) conhecidas(os) como “bandeiras”, que são aquelas(es) que correm na lateral do campo, decidindo com relação aos impedimentos e auxiliando a(o) árbitra(o) central na partida. Destaco isso, porque quando falo que a FGF ficou até 2018 sem árbitras no seu quadro, é com relação às árbitras centrais, porque árbitras assistentes tiveram, ainda que em número absurdamente menor do que árbitros homens (Silva, 2019).
Pensar sobre essa história da arbitragem no Rio Grande do Sul com pouquíssima presença de mulheres, mas que também é um reflexo da arbitragem em nível nacional e mundial, fica bastante difícil, ou quase impossível não assumir a cultura do machismo como uma presença que estrutura as relações no nosso laço social e, consequentemente, (re)produzidas de diferentes formas no universo do futebol, uma prática historicamente associada ao masculino, masculinizante e masculinizador (Almeida, 2013). Evidencio, nesta escrita, cultura do machismo como um conjunto de comportamentos, crenças e agências que promovem e justificam atitudes discriminatórias e de preconceito com relação às mulheres, tendo como base o princípio da superioridade dos homens, razão pela qual o machismo age de modo a produzir controle social em uma cultura sexista (Silva et al., 2008) e também LGBTQIAfóbica.
A inserção das mulheres na arbitragem brasileira teve como pioneira a brasileira Azaléa Campos, a qual enfrentou diversas barreiras para se tornar uma árbitra de futebol. Em 1967, realizou o curso da Escola de Árbitros do Departamento de Futebol Amador da Federação Mineira. Porém, na hora de receber seu diploma foi barrada pelo então presidente da Confederação Brasileira de Desporto (CBD), João Havelange. Teve o reconhecimento de seu diploma pela FIFA só em 1971, no Campeonato Mundial de Futebol Feminino realizado no México (Goellner, 2004).
Por meio das barreiras e preconceitos quebrados por Léa, e também enquanto uma exigência do nosso laço social que questiona cada vez mais os machismos, racismos e qualquer outro preconceito, o campo da arbitragem passou a dar maior espaço para as mulheres.
A paulista Silvia Regina de Oliveira tornou-se mais um destaque nesse meio e foi reconhecida pela Federação Paulista de Futebol, em 1997, tornando-se apta a dirigir jogos oficiais da entidade. Foi em 2000 que apitou pela primeira vez uma partida de futebol masculino no Campeonato Brasileiro A. No mesmo ano, passou a integrar o quadro internacional de árbitras(os) da FIFA (Reis; Arruda, 2011). Em 2003, Silvia Regina marcou um fato inédito para a arbitragem e para o futebol masculino em todo mundo: foi responsável por comandar um trio de arbitragem composto somente por mulheres. Silvia Regina, juntamente com as colegas Ana Paula Oliveira e Aline Lambert, atuaram na partida válida do Brasileirão entre Guarani versus São Paulo, marcando, pela primeira vez, a atuação de uma equipe feminina de arbitragem em um jogo masculino. Além disso, Silvia foi a primeira mulher a apitar uma partida oficial da Copa Sul-Americana na categoria masculina (Reis; Arruda, 2011).
Em 2007, com alteração dos testes físicos e com a determinação de que, para atuar em competições nacionais do futebol masculino brasileiro, as mulheres também teriam que passar pelos mesmos testes físicos exigidos para os homens, mais uma barreira precisou ser quebrada. No entanto, as mulheres ficaram fora das escalas e, quase 10 anos depois, é que o futebol brasileiro voltou a ter uma árbitra central apitando um jogo masculino oficial por torneio nacional. No dia 12 de junho de 2016, pela primeira rodada da Série D, a pernambucana Deborah Cecília comandou a partida entre Murici versus Campinense, o que inclusive tornou-se uma notícia no Globo Esporte (Mundim, 2016).
Somente 14 anos depois é que tivemos uma mulher apitando um jogo de futebol da série A do Campeonato Brasileiro. Edina Alves apitou a partida entre CSA versus Goiás, válida pela sexta rodada do Brasileirão. A escalação da árbitra paranaense, federada em São Paulo, representou um momento histórico para o futebol brasileiro (GZH, 2019). A última vez que isso ocorreu foi em 2005, no duelo entre Fortaleza versus Paysandu. A responsável pelo jogo foi Silvia Regina. Edina Batista, da Federação Paulista de Futebol, é a segunda mulher na história do futebol brasileiro a apitar como árbitra central um jogo da Série A.
Bom, fato é que são várias histórias diferentes, mas todas muito semelhantes com relação ao enfrentamento de barreiras nitidamente constituídas a partir do marcador social da diferença de gênero. Me identifico muito nessas histórias de mulheres árbitras centrais, que apesar de ainda serem poucas em comparação aos homens na arbitragem, têm muito a nos ensinar, e são muito importantes, especialmente com relação à representatividade de mulheres na arbitragem de futebol.
Eu, realizei o curso da FGF em 2018, sendo aprovada em todas as etapas. Dia 1 de maio de 2019, fiz meu primeiro jogo como árbitra central na partida válida pelo Estadual Juvenil, entre Inter de Santa Maria versus Uruguaiana. Escutei relatos de colegas e pessoas do meio da arbitragem no sentido de que fazia praticamente 15 anos que a FGF não tinha uma árbitra central em seu quadro de arbitragem. E, como eu mencionei no início desta carta, se o futebol não existe sem arbitragem, ela estava sendo propriedade exclusiva dos homens durante todo esse tempo.
Andressa Hartmann durante treinamento. Foto: Arquivo pessoal.
Após a estreia fui escalada em outras partidas pelo estado, sendo elas de categorias de base masculinas e futebol feminino. Meu primeiro jogo no futebol profissional masculino foi em 2021, aproximadamente dois anos depois que entrei no quadro de árbitras(os) da FGF. Nesse mesmo ano também tive a felicidade, e como diz Bárbara Carine (2023), o mérito e não a meritocracia, de ingressar para o quadro de árbitras(os) da CBF. Assim, foi em 2022 que trabalhei pela primeira vez em uma partida do Campeonato Gaúcho Masculino na função de quarta árbitra. Destacando que ainda não trabalhei no Campeonato Gaúcho Masculino na função de árbitra central.
Apenas para explicar, muito resumidamente, para quem não sabe, árbitras(os) centrais também fazem a função de quartas(os) árbitras(os), que são aquelas(es) árbitras(os) reservas das(os) árbitras(os) centrais. A(O) quarta(o) árbitra(o) faz as substituições e o controle das áreas técnicas e, em caso da(o) árbitra(o) central, se machucar durante a partida, a(o) quarta(o) árbitro entra no seu lugar.
Não podemos negar, são muitos espaços que ainda temos que lutar por e resistir neles para nos fazermos presentes. Apesar de várias barreiras que diariamente enfrento em razão do machismo e do sexismo no futebol, eu estou muito feliz pela minha trajetória desde 2018 na arbitragem. Sei que já faço parte de uma história importante da arbitragem feminina no Rio Grande do Sul. Recentemente, em setembro de 2024, pela primeira vez na história da arbitragem do Rio Grande do Sul, teve uma partida de competições organizadas pela FGF com um quarteto de arbitragem constituído somente por mulheres, sendo eu a árbitra central do jogo. Importante destacar que a própria FGF reconheceu a partida como um acontecimento histórico, reforçando com uma reportagem em seu site no dia anterior ao jogo:
Pela primeira vez na história uma partida de competições organizadas pela Federação Gaúcha de Futebol – FGF terá um quarteto feminino de arbitragem. Nesta quarta-feira (25), no duelo entre Aimoré e São Paulo, às 19h30min, no Cristo Rei, pela 6ª rodada da Copa FGF – Troféu Zagallo, quatro mulheres estarão no comando. A árbitra Andressa Hartmann será auxiliada por Maíra Mastella Moreira e Estefani Adriati Estrela da Rosa. Bruna de Miranda Martins será a quarta árbitra (Freitas, 2024) [destaques da reportagem].
Foto: Arquivo pessoal.
Percebo essa partida com um quarteto totalmente composto por mulheres como uma conquista muito importante, pois demonstra a evolução da arbitragem feminina gaúcha e também a confiança da Comissão Estadual de Arbitragem de Futebol (CEAF) no trabalho. Sinto que trata de um momento em que os olhos brilham e que nos fortalece para seguirmos o caminho que escolhemos. Atualmente, conforme informações retiradas do site da CEAF[1], a Federação Gaúcha de Futebol (FGF) tem 180 profissionais aptos a atuar, entre árbitras(os) centrais/principais e assistentes (bandeirinhas). Somente 10 são mulheres, sendo elas duas árbitras centrais e oito árbitras assistentes.
Refletindo sobre as diferentes histórias e trajetórias de mulheres na arbitragem de futebol profissional, bem como sobre esses baixíssimos números de árbitras no quadro da FGF – o que não é diferente nos quadros da CBF e da FIFA – ainda na contemporaneidade, partilho do estudo de Monteiro (2016) sobre as trajetórias de mulheres na arbitragem do futebol profissional, onde ele identifica que o futebol se manifesta como um campo estruturante de uma hierarquia de gênero, no qual, na medida em que a mulher entra, é estranho, duvida-se da sua competência, colocam barreiras para interditá-las e inclusive suspeita-se da sua sexualidade.
Além disso, a partir dos relatos das entrevistadas na sua pesquisa, sobre a maneira como a mulher era vista na arbitragem de futebol, Monteiro aponta para uma categorização da mulher na figura de árbitra e a um consenso preconceituoso sobre a ausência de competência em relação a elas para exercer tal função. Sendo assim, além de precisarem conciliar a vida profissional com a vida social, manter a forma física, viajar, aguentar o cansaço, saber lidar com as cobranças por parte da mídia e a pressão da torcida, o preconceito sofrido pelas mulheres no campo esportivo e, em destaque, na arbitragem, é a maior dificuldade que precisa ser quebrada.
Nesse sentido, compreendo que é necessário reconhecer que as lutas femininas no âmbito do esporte são constantes e que os enfrentamentos são diários, dadas às desiguais relações de gênero que nele existem. As mulheres deslocaram representações que naturalizavam o campo esportivo e, em destaque, a arbitragem, como um território onde a masculinidade se comprovava, fraturando essa noção e borrando fronteiras. Por tal razão, apenas o fato de as mulheres permanecerem na arbitragem já denota uma ação de resistência, em que, apesar das barreiras ultrapassadas, ainda há muito para ser feito (Jaeger et al., 2010).
Venho pensando que as oportunidades ofertadas são um grande passo para inspirar e encorajar mais mulheres a se inserir no meio, até porque é difícil a gente sonhar com algo em que a gente não se vê, não se imagina. Com mais mulheres arbitrando partidas de futebol, aparecendo na mídia, mais meninas poderão se enxergar ali, mais meninas poderão perspectivar a arbitragem como uma possibilidade para si. Ao fazer uma retrospectiva das trajetórias das árbitras que vieram antes de mim, e da minha própria história na arbitragem, reconheço que as histórias e trajetórias se atravessam e têm muitos elos de conexão, sejam pelos enfrentamentos, pelas violências, pelas opressões, pelas resistências, pelos preconceitos e discriminações de gênero, mas também, pelas conquistas de espaços, pelas vitórias, pelas felicidades por fazer parte de histórias importantes para a arbitragem de mulheres.
Enfim, quero evidenciar que o quadro de árbitras(os) gaúchas(os) tem uma qualidade diferenciada, o que é reconhecido nacionalmente e mundialmente. As mulheres e os homens do apito são forjados a um nível de exigência muito alto, pois o estado é dividido pela dualidade de muitos clássicos. Fazer parte deste quadro é uma felicidade muito grande. Ser pioneira dentro estado é muito especial.
Me despeço por ora reconhecendo que muitos avanços já aconteceram, como eu já não ser mais a única árbitra de futebol mulher no quadro da FGF, assim como estar sendo escalada em partidas importantes, tanto para o futebol estadual, como o nacional. Mas ainda assim, as múltiplas violências, preconceitos e discriminações de gênero seguem acontecendo no nosso laço social, nesse caso, especialmente no contexto de formação subjetiva de árbitras de futebol, seja em campo durante as partidas, seja antes e depois delas.
Até breve, minha querida árbitra de futebol.
Com carinho,
Andressa Hartmann.
Referências
ALMEIDA, Thaís Rodrigues de. Mulheres no esporte: feminilidades em jogo. In: DORNELLES, Priscila Gomes et al. Educação Física e gênero: desafios educacionais. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2013. p. 241-265.
GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulher e Esporte no Brasil: fragmento de uma história generificada. In: SIMÕES, A. C.; KNIJNIK, J. D. (Orgs.). O Mundo Psicossocial da Mulher no Esporte. Comportamento, gênero, desempenho. São Paulo: Aleph, 2004. p. 359-373.
JAEGER, Angelita Alice; GOMES, Paula Botelho; SILVA, Paula; GOELLNER, Silvana Vilodre. Trajetórias de mulheres no esporte em Portugal: assimetrias, resistências e possibilidades. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 245-267, jan./mar. 2007. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/3825. Acesso em: 20 nov. 2024.
SILVA, Paula; GOMES, Maria Paula Brandão Botelho; GOELLNER, Silvana Vilodre. As relações de género no espaço da educação física: a percepção de alunos e alunas. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, Porto. Vol. 8, n. 3, p. 396-405, set./dez. 2008. Disponível em: https://doi.org/10.5628/rpcd.08.03.396. Acesso em: 20 nov. 2024.