Evento começa com uma de suas principais promessas nem perto de ser cumprida: o saneamento da Baía de Guanabara. Atletas competirão num local infestado de lixo, como num símbolo do ocaso da cidade.
Fonte: http://www.terra.com.br/
Poluição nas águas da Baía de Guanabara, em foto de março de 2015 no Rio de Janeiro
Alex Sandro dos Santos
está de pé sobre um velho cais de madeira que leva até os barcos dos
pescadores, a partir do bairro de Tubiacanga, na Ilha do Governador, na zona
norte do Rio de Janeiro. Com 48 anos de idade, ele pesca na Baía de Guanabara
desde que tinha dez anos.
"Aqui ainda tem uns 20 mil pescadores, cada um com três ou quatro filhos
para criar. Mas com a queda da população de peixes, nem todos conseguem viver
da pesca. Muitos trabalham como garçom para ganhar um extra", queixa-se
Alex Sandro, que complementa o orçamento construindo caixas de madeira.
O
motivo para o desaparecimento dos peixes fica claro assim que se dá uns poucos
passos pelo cais: o cheiro é de fezes e lixo, na água há garrafas plásticas,
sapatos, até móveis inteiros flutuando; o lodo nas margens é uma massa
mal-cheirosa e imunda.
Nessa
área próxima ao Aeroporto Internacional do Galeão, a vista para o mar é
dominada pelas chaminés das refinarias de petróleo e pelo mar de casas do Rio,
a cidade de 6 milhões de habitantes que lança seus esgotos não tratados na Baía
de Guanabara, como se fosse a coisa mais normal do mundo: 18 mil litros de água
por segundo.
A
indústria pesada igualmente deposita há décadas os seus dejetos altamente
tóxicos na baía oceânica. A 32 metros de profundidade, o lodo do fundo está
fortemente contaminado com metais pesados, e a água pulula de bactérias
multirresistentes.
Além
disso, em janeiro de 2000 a ruptura de uma tubulação resultou no vazamento de
mais de 1 milhão de litros de petróleo para dentro da baía e para a reserva
ecológica dos manguezais costeiros. Muitos moradores estão esperando até hoje
para receber as indenizações devidas da semiestatal Petrobras.
Ignorando
as bactérias
Enfim:
a baía - cujo belo nome em tupi significa "mar do seio",
provavelmente devido à antiga abundância de peixes - serve ao Rio de Janeiro,
ao mesmo tempo, como cloaca, lixão e depósito para restos de óleo mineral. Fato
que não impediu o Comitê Olímpico Internacional (COI) de escolhê-la como local
para as competições de vela dos Jogos Olímpicos de verão.
Depois
participar de um teste de regata em 2015, o velejador alemão Erik Heil contraiu
infecções nas pernas e quadris, que só cederam após o retorno a Berlim, com a
ministração de um antibiótico de amplo espectro.
Diversos
atletas dizem ter receio de entrar na Baía de Guanabara, e pretendem evitar
todo contato da água com a pele. O alemão Heiko Kröger, medalha ouro de vela
nos Paraolímpicos de 2000, escreveu para Thomas Bach, presidente do COI:
"Se eu fosse o senhor, não conseguiria mais dormir de noite."
Especialistas
confirmam que as bactérias das águas do Rio podem desencadear doenças bem
piores que a de Erik Heil. "Os esportistas devem, de todo modo, se vacinar
contra hepatite A, antes de começar no Rio", aconselha o biólogo marinho
Mario Moscatelli. Com a densidade bacteriológica que ele constatou, tampouco
estão descartadas doenças como a meningite.
Medidas vãs de saneamento
Fundador
do Movimento Baía Viva, o ecologista Sérgio Ricardo se ocupa há anos do
escândalo ecológico da enseada carioca. "Nós chamamos isso de 'o milagre
da Guanabara': aqui se encontram todas as espécies, fora baleias." De
fato, se ainda há alguma vida no local, é graças a um pequeno afluxo de água
fresca do Oceano Atlântico. Por outro lado, esgotos e cerca de 100 toneladas
diárias de lixo continuam sistematicamente destruindo vidas.
Ele
entra com o barco na baía, para mostrar as dimensões do desastre ecológico,
provando como fracassaram todos os diversos esforços para sanear o corpo d'água
- os quais COI gosta muito de mencionar, sempre que há críticas à escolha do
Rio como cidade-sede.
Entre
1994 e 2006, o estado do Rio de Janeiro investiu o equivalente a mais de 1
bilhão de euros na construção de estações de tratamento de água, com apoio do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Agência para Cooperação
Internacional, do Japão.
O
problema é que até hoje a maioria das tubulações necessárias não foi instalada,
e a maior parte do esgoto continua caindo diretamente no mar, sem qualquer
tratamento. Enquanto isso, as seis estações construídas vão se arruinando.
"O programa quase não teve efeito", acusa Sérgio Ricardo. "Em
vez disso, o governo aposta em medidas cosméticas: por exemplo, barcos para
pescar o lixo da água."
Extração
de petróleo, outro vilão
Em
2013 foi iniciado um segundo projeto de saneamento, com custo superior a 200
milhões de euros. No entanto, também aqui o vazamento de verbas foi grande,
como ao se conectarem várias casas ao sistema de canalização, sem que este
desembocasse na estação de tratamento d'água. Havia diversas instituições
envolvidas, em nível municipal, estadual e federal, e muito dinheiro se perdeu
com a burocracia e corrupção.
Assim
como outros peritos, Sérgio Ricardo tem certeza que o saneamento da Baía de
Guanabara é um projeto de longo prazo, sendo necessários, no mínimo, 20 anos
até se começarem a ver os primeiros efeitos. Já a "limpeza expressa"
para as Olimpíadas não serviu para nada.
É
preciso construir canais e lagunas e tem que ser eliminado o aterro sanitário
desativado nas proximidades das águas, reivindica o ecologista: "Combinado
com o lixo que é lançado do Rio, o aterro é o coquetel molotov da Baía."
Para
culminar, não se pode excluir que nos próximos anos a indústria petroleira
continue a perfurar no local: a cerca de 7 mil metros de profundidade ainda se
encontram grandes jazidas, e a economia brasileira segue dependente do
combustível fóssil. Aí é questionável se a técnica de filtragem bastará para
compensar a utilização industrial intensiva.
Peixe
continua chegando às mesas
A
conclusão do pescador Alex Sandro dos Santos é desoladora: "A gente tinha
a esperança de que alguma coisa fosse melhorar com as Olimpíadas, mas nada
aconteceu: a esperança é zero." Por isso é importante seus colegas de
profissão que ainda restam tomarem o destino nas próprias mãos.
Isso
não o impediu de participar da fundação do Observatório Pesqueiro da Baía de
Guanabara, que aponta irregularidades na área e promove programas alternativos
para os pescadores - como, por exemplo, a criação de peixes em antigos tanques
de petróleo.
Apesar
do lixo, óleo e metais pesados, Santos não esconde seu orgulho e determinação
ao afirmar que "o peixe da Baía continua chegando às mesas, apesar dos
debates". Ele mesmo ainda não ficou doente por isso: "Tenho uma saúde
de aço", assegura, sorrindo.
E,
ao se despedir, ainda dá um dica sobre a melhor forma de degustar o peixe da
Guanabara: acompanhado por um chope bem gelado.
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