Matéria da Folha de São Paulo
Aos 20 anos, Piu retoma ascensão em busca de medalha nos Jogos Olímpicos de Tóquio
Poucas horas depois de bater o recorde sul-americano dos 400 m com barreiras na etapa de Mt.Sac do Continental Tour de atletismo, na Califórnia, com a marca de 47s68, no dia 9 de maio, Alison Brendom Alves dos Santos, 20, publicou uma frase em suas redes sociais.
“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças. Essa frase define. Quem sabe, sabe”, escreveu, mencionando uma citação já atribuída a diferentes autores.
Primeiro brasileiro a correr abaixo dos 48 segundos, superando o recorde nacional de Eronilde Araújo, de 48s04, em 1995, além do continental, obtido pelo panamenho Bayano Al Kamani, de 47s84, em 2005, Alison se acostumou a contrariar expectativas negativas.
Na prova que o consagrou, superou problemas causados pela logística de viagem. Após a participação no Mundial de revezamentos, na Polônia, a delegação chegou somente a dois dias do evento, sem tempo para treinamentos, e a presença na disputa chegou a ser discutida com o técnico Felipe de Siqueira Silva.
“Eu cheguei na sexta para correr já no domingo. Não sabíamos como nosso corpo ia responder à viagem e à recuperação. O treinador nos perguntou se queríamos competir. Eu disse que sim, sou muito competitivo. Era uma oportunidade que não queria perder”, afirma à Folha.
“Conseguimos nos adaptar à viagem e à competição para ter um bom resultado, por isso a frase. O ‘quem sabe, sabe’ é relacionado a quem sabia das coisas que aconteceram, a quem estava ciente dos percalços que estávamos passando", completou.
Em 2021, ele retomou o que fazia em 2019, quando foi medalhista de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Lima e sétimo colocado no Mundial de Doha, melhorando suas marcas constantemente. No ano passado, por causa da pandemia, não competiu.
Alison, talento precoce e visto pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) como a maior revelação do esporte nos últimos anos, é um especialista em pular barreiras também fora das pistas.
Em parte da quarentena, ele voltou para a cidade natal, São Joaquim da Barra (a 460 km de São Paulo), e adaptou treinamentos para continuar o sonho de chegar ao ápice em Tóquio.
Deixou o Centro Olímpico de Treinamento de Chula Vista, na Califórnia, direto para o quintal da própria casa. Levou anilhas, barras e, posteriormente, encontrou uma rua de cimento, sem grande movimento de carros, para pequenas corridas.
“Nada era adequado, foi pura adaptação. No meu caso, que preciso da barreira em si, foi muito complicado tudo isso”, relata.
Quando voltou a São Paulo, passou a correr próximo ao Obelisco e no Parque Ibirapuera. Sofreu com pequenas lesões no período.
“O parque é perigoso, um terreno que você não conhece tão bem, onde pode torcer o pé e se machucar. Estávamos bem preocupados com isso. Treinamos sem noção de como realmente estava e, nesse período, tive lesões que me atrapalharam no desenvolvimento do meu trabalho”, conta.
O atleta ainda contraiu Covid-19 próximo à retomada do período competitivo, ficando ausente do Troféu Brasil.
Alison, porém, tem um lastro grande de vitórias pessoais que o ajudaram a forjar uma personalidade confiante. Quando tinha apenas dez meses, morando na casa dos avós, virou sobre si uma panela de óleo quente, usada para fritar peixe.
Passou quase quatro meses internado no Hospital de Câncer de Barretos e carrega marcas até hoje, a principal delas na cabeça.
“Hoje eu falo tranquilamente do acidente. Antes, tinha vergonha. Foi um processo mesmo. O atletismo me fez crescer aquilo que sou por dentro. Eu era tímido e tinha vergonha por conta da minha cicatriz, sempre tentava esconder. Agora, eu sou o Piu”, diz.
Piu “com u”, como gosta de ressaltar, é o apelido que carrega desde a chegada ao atletismo. Ele passou a ser chamado assim pela semelhança física com outro garoto de um projeto social da cidade, conhecido por Piu.
“Eu não sou do atletismo, não tinha nem noção do que era isso. Fazia judô e kung fu, mas foram na escola e me apresentaram o esporte. Achei curioso o fato de me chamarem de canto para ir treinar. Enrolei muito, só apareci depois de cinco meses, quando um amigo meu foi junto”, relembra.
Obsessivo por melhoras, ele estuda constantemente provas de atletas como os americanos Edwin Moses, bicampeão olímpico em 1976 e 1984, e Kevin Young, medalhista de ouro em Barcelona-1992 e recordista mundial até hoje.
“Sou o único que corre a prova de uma maneira diferente de todos que hoje competem comigo. Tenho que estudar e adaptar trabalhos para a minha individualidade. Não consigo ser tão rápido em alguns espaços da barreira, por meio que faltar chão. O Kevin Young tem a corrida semelhante à minha, fazemos a mesma corrida, da mesma maneira”, explica.
Kevin Young cruza a linha de chegada para vencer os 400 m com barreiras em Barcelona e estabelecer o recorde mundial - Eric Feferberg - 6.ago.92/AFP
“Por eu ser muito alto (2 metros) não dá para me comparar com um atleta de 1,75 m ou 1,80 m. Estudamos as pessoas que se aproximam mais do meu biotipo para buscar ser melhor, mais eficiente na barreira e no número de passadas”, acrescenta.
O estudo de Piu é minucioso sobre uma das provas mais tradicionais e complexas do atletismo. É fundamental trabalhar no número de passadas entre as dez barreiras posicionadas ao longo dos 400 m de pista.
A prova ideal para ele é calculada com 20 passadas até a primeira barreira. Da segunda à quarta, 13. Da quarta à sexta, 12. Depois, novamente 13 passadas entre as barreiras seguintes.
“Qualquer erro no começo, no meio ou no fim vai influenciar. Se errar na primeira barreira, vai sofrer na segunda, na terceira, até a última. É uma prova em que você precisa buscar a perfeição e a sua individualidade."
Perto do maior teste até aqui, ele espera que nada possa atrapalhar o que projetou no Japão. Para isso, já abdicou de competir no revezamento 4 x 400 m misto, em que se destacou no Mundial da Polônia no início do mês, priorizando a prova individual. “O programa das provas bateu de elas serem no mesmo dia, então abrimos mão."
Alison agora sonha alto. Primeiro com uma medalha olímpica. Um dia quem sabe com o recorde mundial. “Se eu não acordar pensando nisso, vai estar errado."
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